terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Quando estar à deriva é sobreviver

*Impressões após o espetáculo "Cais ou da Indiferença das Embarcações", texto de Kiko Marques em cartaz no Instituto Cultural Capobiando - Teatro da Memória, em São Paulo.


Chegar é o que me tira o sono, se fosse apenas partir, algo como um abandono ou desapego. É sempre tempo de chegar. Eu pego a mala errada, você derruba o chapéu, engraçado não saber o seu nome.
O que me acalma é o trajeto. E eu já te sabia ali.
É tempo de se esbarrar e sonhar com a textura do seu paletó no meu antebraço. É isso o que eu tenho, ¾ do seu rosto, o roçar da sua manga e um nome que eu te dei. Pouco importa essa mala errada, mais leve que a minha. Não compreendo os movimentos de partida. Pra mim tudo é sempre chegada. Eu admiro as pessoas nos cafés, impecáveis, comendo biscoitos parecendo pinturas e ah, não me encaixo nesse quadro, que eles sejam ali quadros bonitos, faço minha parte em só olhar. Acumulo nos cantos da mala o que eu preciso, nunca peso a bagagem. Abro a mala e tenho quatro ou cinco coisas que condensam a minha história e mostram ao novo quarto quem chegou e a que veio.

Pra quem nunca ancorou, à deriva é lar. E você me perguntava até quando eu ficaria... pergunta mais boba de se fazer! O calendário é feito à mão, desenhado sobre a mala. E você me perguntava... coisa mais besta “querer saber”. Um dia paro num buraco dum caule duma árvore e vou pensar na sua orelha, na sua suíça e mais na terça parte do seu rosto, do osso forte do seu nariz e vou soprar sozinha. Pra mim tudo é sempre chegada. Aí você vai saber aonde eu estou, vai até me dar um nome e vai me perguntar. E vou dizer que aquela mala nem minha era, você deveria saber que eu não levo sabonetes caros e camisolas cor-de-nada. Você me pergunta de novo. Chegar é já estar.
O vento soprou pra Leste e você acreditou. O vento sempre esteve parado ao seu lado como um grilo falante, mau agouro, papagaio de pirata, sei lá. A minha mala foi parar no mar. Dramático? Cê acha? Tudo bem... eu não sei onde ela foi parar, se é que ela tá parada no mar.

No balcão de extravio digo que ela é marrom, com uma fivela prateada e uma fita vermelha (lembra? eu te disse que era uma mala poética), dentro tem um desenho de perfil barbudo que você é, tem água, velas e um punhado de terra vermelha. Na etiqueta não se consegue ler o nome, são adesivos de muitos destinos sobrepostos.
Aí você me acha desvairada.
Mal sabe você que o meu vento aprendeu a parar porque entendeu seu ombro como porto.

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